terça-feira, dezembro 06, 2011

A força da tutela

A força da tutela

PAULO DELGADO

              O sofrimento virou doença. Qualquer mal-estar diante do mundo, um distúrbio. A ambição grandiosa da psiquiatria está cada vez mais parecida com o sem limite do mercado financeiro. Querem que todos vivam suas leis de ferro, amedrontados e submissos. Nada melhor para a criação de crises do que um poder sem sociedade, com regras próprias, exercido sobre todas as pessoas, sem que elas tenham direito de reagir ou ficarem indiferentes. Basta dar o nome de diagnóstico para relacionar sintomas e definir como transtorno qualquer manifestação da personalidade.
              Quando a prática da medicina, subjugada à indústria de medicamentos, se oferece como cárcere, ficamos diante de uma verdadeira bomba embrulhada como se fosse terapia. Pior quando uma especialidade médica transforma em missão sanitária esconder hábitos e tarefas de uma sociedade indiferente a vida dos outros e que só vê as pessoas de forma binária: com sucesso, ou fracassadas.
             A Organização Mundial da Saúde (OMS) anda preocupada com a definição de doença mental que a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doença Mental — universalmente conhecido como DSM-V — anda preparando. A ser lançada em 2013, mas já objeto de tensa polêmica no meio psiquiátrico, especialmente norte-americano, a nova edição da DSM, transforma o cérebro num disco rígido. Um computador sem alma, intoxicado, num mundo cada vez mais doente e que somente poderá ser salvo por remédios. A OMS alerta que não aceita a desenvoltura da classificação, porque não é doença o que não pode ser caracterizado patologicamente, tem etiologia desconhecida, não possui padrão uniforme, não pode ser confirmado.
              Quem não viveu, alguma vez na vida, alguma destas graves “doenças” psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, autismo, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos, etc. São tantos os nomes das “doenças do nervo” que agora viraram sinônimos de remédios e comportamentos, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos que a sociedade perceba a gravidade dessa verdadeira epidemia que é querer tratar pela psiquiatria as dificuldades e problemas que fazem parte da vida. Junte os ritmos cada vez mais velozes e insanos da vida diária a esta forte tradição que tem a medicina de “encaixar um sintoma”, prescrever um remédio e mandar para o hospital que vamos todos viver dopados. Qual é a definição precisa de transtorno mental? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas?
               Qualquer coisa malfeita afeta todos. Mas quando é feita na rua aos olhos de todos como se fosse uma acusação, seja pelos despossuídos que usam crack, seja pelas autoridades que usam o arbítrio para fazer a cidade limpa, há aí outra vertente impiedosa dessa epidemia da tutela. Aqui o erro vem na sua forma prática como serviço, depósito de exilados. No mesmo embrulho mistura arbítrio e falsa legalidade e dá o nome de tratamento para o que é abandono. Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e praças. O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros. Gerador de atenção e afeição momentânea não consegue transformar em sonhos o que está vivendo. Se o judiciário diz que é legal passeata para defender o que é considerado ilegal, de onde sai a ousadia da autoridade para recolher das ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados? Onde pretende devolvê-los?
                 Dar o nome de terapia à indiferença social e ao fracasso da política pública — que não tem força para destinar recursos para serviços abertos 24h, descentralizados e multiprofissionais de acolhimento — só confirma a força que a indústria médica da tutela continua a ter sobre a população.
                 O que só aumenta a tragédia que é ver o sofrimento não gerar mais afeição.

PAULO DELGADO é sociólogo, foi deputado federal pelo PT de Minas e autor da Lei da Reforma Psiquiátrica.
 E-mail: contato@paulodelgado.com.br.   O Globo – 05/12/2011

Um comentário:

  1. Muita calma sr. Paulo Delgado. Parece bem infantil sua argumentaçãao. Misturar assuntos podem confundir a opinião de leigos, que desconhecem particularidades do tema.

    "Despossuídos do crack"? Acaso o senhor desconhece que , embora de menor custo, o crack não vem sendo utilizado apenas por dependentes químicos de baixa renda?

    "...Chama de falha moral a ousadia de esses jovens se desintegrarem nas ruas e praças." A partir do momento em que a ciência, através dos modernos e seguros exames de imagem cerebral, entre outros, classifica Dependência química como doença, retira do usuário o estigma de "viciado", "sem vergonha", entre outros adjetivos de menor respeito à dor e ao sofrimento desses seres humanos.

    "O usuário de crack compartilha a única localização no espaço urbano onde o efeito do que ele faz não é insignificante para os outros" Parece-me que pela sua formação o sr. hipervaloriza os efeitos sociais da droga, desmerecendo os efeitos orgânicos desta, que gera sequelas irreversíveis ao cérebro humano, em especial ao da criança e do adolescente, que ainda está em formação. Humildade e respeito são palavras de ordem para quem quer trabalhar pelo bem de terceiros. Humildade em reconhecer que não é detentor de todos os saberes; e respeito ao confiar no conhecimento alheio, sem questioná-lo sem antes se informar profundamente a respeito do que almeja atacar.

    "recolher das ruas e retirar direitos de jovens pobres e abandonados?" Se drogar não deve ser considerado um direito, assim como tomar veneno ou ingerir chumbinho. A constituição brasileira aponta como direito de todo cidadão o acesso à saúde. Permitir a prática ilegal do consumo de drogas por menores cujos pais não estão exercendo seu dever de protetores é leviano, é descumprir a constituição. Quando pais não exercem seu dever de proteção ao menor sob sua guarda, cabe ao Estado promover guarda alternativa, entregando esses menores a outras famílias ou a abrigos provisórios. E nesses abrigos provisórios, segundo a lei, eles devem ter acesso à saúde - física e mental- alimentação higiene, educação, entre outras providências.

    Vamos combater a má gestão social, que não oferece espaços de ação eficiente para receber esses menores, e não combater a ação urgente de afastar esses meninos do mal que as drogas oferecem hoje, e que comprometerão o futuro dessa geração que hoje já tem menor acesso à sociedade, e com cérebros sequelados, terão menos acesso ainda. Têm hoje uma realidade de rejeição social e terão ,no futuro, como adultos, a mesma realidade de rejeição, pois mais incapacitados ainda serão. Lais Araújo
    em tempo, posto como anônimo pois tive dificuldade em registrar URL.

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Comentários: