quarta-feira, abril 06, 2011

Dez anos da Lei 10.216: E agora, para onde vamos?

Dez anos da Lei 10.216: E agora, para onde vamos?
Nessa quarta-feira, dia 06 de abril, celebraremos os dez anos de promulgação da Lei 10.216, a “Lei da Reforma Psiquiátrica”. Trata-se de uma ocasião importante a ser destacada não apenas por constituir uma data redonda comemorativa de um marco decisivo para o campo da saúde mental, mas, sobretudo, porque o fechamento dessa década constitui em si mesmo um novo marco evolutivo desse campo. Posicionada significativamente na virada de dois milênios e dois séculos, e situada na dobradiça de duas décadas fundamentais para a política pública de saúde mental, a promulgação da Lei 10.216 representou, ao mesmo tempo, um término e um começo.
Primeiramente, representou o término do longo percurso instituinte da reforma psiquiátrica brasileira. Alavancado inicialmente pela apresentação do Projeto de Lei Paulo Delgado (PL-3657) à Câmara dos Deputados, em 1989, e pelos experimentos municipais bem sucedidos de reforma psiquiátrica do final dos anos 1980, o percurso foi construído tanto através do intenso debate deflagrado no seio da sociedade civil pelo PL-3657, tendo à frente movimentos sociais como o MNLA, quanto por iniciativas dentro do próprio Governo, como as primeiras portarias do Ministério da Saúde reorientadoras do modelo de assistência psiquiátrica lançadas, no início dos anos 1990, durante a gestão de Domingos Sávio à frente da Coordenação Nacional de Saúde Mental.
Em segundo lugar, representou o começo da etapa instituída da reforma psiquiátrica brasileira, que, embalada pela realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida nos mesmo ano da promulgação da Lei, se caracterizou pela elaboração da base normativa do SUS para o campo da saúde mental e pela construção e expansão aceleradas, em todo o País, da rede extra-hospitalar substitutiva ao modelo manicomial. A reversão do modelo de financiamento, com o investimento na rede extra-hospitalar ultrapassando significativamente o da rede hospitalar, o aumento exponencial da cobertura em saúde mental potencializado pelo processo de territorialização, interiorização e difusão por todas as regiões do País da rede substitutiva, assim como a inclusão da população de crianças e adolescentes no acesso ao cuidado em saúde mental, representaram conquistas indiscutíveis da década que se seguiu à promulgação da Lei 10.216.
Mas, se a década que antecedeu a promulgação da Lei 10.216 se ocupou da construção da política de saúde mental, e a década que a sucedeu se incumbiu da organização da rede substitutiva territorial, que papel se deve esperar dessa nova década que acaba de começar após o divisor de águas estabelecido pela IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial?
Ora, o destaque inovador dado à questão da intersetorialidade na IV CNSM fornece uma pista importante para responder a essa pergunta. Pois, se a primeira década se encarregou da construção política, e a segunda da organização da rede, tudo leva a crer que a terceira terá a missão de promover a integração da rede de saúde mental ao campo da atenção primária em saúde e ao conjunto das políticas públicas desenvolvidas pelos demais setores governamentais.
O desafio inadiável que a Saúde Mental necessita enfrentar hoje é, portanto, o de libertar-se da “caixinha” na qual, frequentemente, costuma colocar-se ou ser colocada, no seio do Setor Saúde, e, ultrapassando os limites ainda estreitos da estratégia organizacional substitutiva, assumir, de uma vez por todas, a transversalidade fundamental que deve caracterizar esse campo como dimensão da saúde integradora de todas as políticas públicas, sejam estas de saúde, em sentido estrito, sejam estas sociais ou promotoras de direitos.
Esse encontro, tão esperado, e que só agora se realiza plenamente, entre a reforma sanitária e a psiquiátrica, não se dá, porém, sem percalços, nem sem equívocos e estranhamentos recíprocos. As duas reformas irmãs fizeram caminhos paralelos ao longo do processo de construção do Sistema Único de Saúde, e, embora baseadas em um mesmo modelo territorial, adotaram ênfases e prioridades distintas em termos populacionais e sistêmicos, e hoje enfrentam, naturalmente, dificuldades no processo de integração. Caberá à próxima década buscar e implementar soluções para esses desafios organizacionais.
Contudo, não são apenas desafios organizacionais que nos aguardam nos próximos anos, a tripla crise estrutural do SUS, envolvendo as áreas de gestão, de financiamento e de recursos humanos, para além dos problemas que coloca diretamente, tem servido também de justificativa para uma forte inflexão ideológica, que, em sintonia com o avassalador predomínio internacional do neoliberalismo econômico, propõe a progressiva privatização do sistema, introduzindo assim enormes contradições na lógica estruturante do SUS.
Dessa forma, se, por um lado, temos fortes motivos para comemorar os dez anos de promulgação da Lei 10.216, por outro, temos igualmente sérias razões para nos preocupar com o futuro próximo. Que estratégias políticas, que linhas pragmáticas devem nos guiar pelo labirinto que se entende no horizonte?

Fernando Ramos, abril de 2011.

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